Pessoa

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domingo, 30 de outubro de 2011

RECEITA PARA A BOA MORTE

RECEITA PARA A BOA MORTE

           Em Podemos Dizer Adeus Mais de Uma Vez, o psiquiatra francês David Servan-Scheiber relata seus últimos meses de vida. Tocante e espantoso

Giuliana Bergamo

              Ecoando o pensador romano Cícero, Lê-se no ensaio “De como filosofar é aprender a morrer”, do escritor francês Michel de Montaigne (1533 – 1592): “Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento”. Se houve um homem livre nesse sentido, foi o psiquiatra francês David  Servan-Scheiber. Autor de Curar e do best-seller Anticâncer, ele lutou durante vinte anos contra um tumor maligno no cérebro. Aos 50 anos, sucumbiu à doença em 24 de julho passado. Morreu como queria – ao som do segundo movimento do Concerto Para Piano Nº 23 de Mozart. Seu último livro Podemos Dizer Adeus Mais de Uma Vez, é uma lição emocionante de como morrer bem ou, como descreveu a revista francesa Paris Match, “um manual de vida estarrecedor”. “Ter a possibilidade de preparar a partida é, na verdade, um grande privilégio”, escreveu ele.
            O relato de Servan-Scheiber  começa com a recidiva do câncer, em junho de 2010, e termina dois meses antes de sua morte, quando a doença lhe roubara a voz e quase todos os movimentos. Lançado no Brasil pela editora Fontanar,  Podemos Dizer Adeus Mais de Uma Vez chega às livrarias na próxima semana. A lucidez e a honestidade com que o médico descreve seus últimos momentos de vida são, mais do que tocantes, espantosos. Enganam-se aqueles que esperam ler o depoimento de um homem que nada teme ao antever o fim da própria existência. O psiquiatra tinha, sim, medo da morte – e muito. Mas enfrentou o pavor com as lições de coragem que o pai lhe deu na infância. A principal delas, “agüentar firme mesmo tremendo como vara verde”. O psiquiatra era o primogênito dos quatro filhos de Jean Jacques Servan-Scheiber, jornalista, ensaísta e político francês , morto em 2006, vítima das complicações da doença de Alzheimer. E o médico agüentou firme. Em alguns momentos, o livro é uma espécie de guia desprovido de sentimentalismo ou pieguice. Como no trecho em que conta sobre o dia em que chamou a mulher, Gwenaelle, para planejar o futuro dos filhos depois de sua morte – Charlie, então com dois anos, e Anna, com apenas seis meses. De seu primeiro casamento, ele teve Sacha, na ocasião com 16 anos. “Fiquei muito surpreso ao descobrir até que ponto a redação de um testamento pode ser gratificante. Ela cria um sentimento de domínio total e, ao mesmo tempo, de generosidade, doação, transmissão”, descreveu.
            É raríssimo encontrar um paciente terminal que consiga falar sobre o que o espera com tanta naturalidade. A morte permanece um assunto tabu. Uma senhora de 91 anos, paciente da médica Maria Goretti Maciel, diretora do serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, é vítima de câncer de pâncreas desde abril. Ela nunca conversou com a família sobre a gravidade da doença, tampouco sobre o fim que se aproxima. Ainda assim, pediu aos filhos que organizassem uma festa de natal antecipada. No domingo passado, todos se reuniram para uma ceia e a troca de presentes. É de perguntar se o não dito tornou a festa menos penosa.
        O primeiro diagnóstico de câncer de Servan-Scheiber foi feito aos 31 anos. Submetido a cirurgia e  sessões de quimioterapia, conseguiu controlar a doença. Em 2000, o tumor voltou. Ele, então, mudou radicalmente seu estilo de vida. Depois de uma pesquisa exaustiva, lançou o livro Anticâncer, no qual defendia a meditação, a ioga, os exercícios físicos e a adoção de uma dieta rica ômega-3, como práticas a serem seguidas para evitar a doença ou contê-la.
            Podemos Dizer Adeus Mais de Uma Vez é também uma resposta aos leitores que talvez venham a se perguntar como o autor de Anticâncer morreu de câncer”, disse  a VEJA o engenheiro Franklin Servan-Scheiber, um dos irmãos de David. E ela está na página 53: “Podemos pôr todos os nossos trunfos no jogo. Mas o jogo nunca está ganho”. Não fossem os hábitos saudáveis que adquiriu, Servan-Scheiber  não teria a oportunidade de aprender a morrer. Terminado o livro, o médico recolheu-se na antiga casa da família na região francesa da Normandia. Ali, nas últimas semanas, recebeu a visita de parentes e amigos. A mulher e os filhos pequenos o visitavam com frequência . O adolescente Sacha veio dos Estados Unidos para se despedir e viu o pai poucas horas antes de ele fechar os olhos pela última vez. Servan-Scheiber morreu à noite, por volta das 9 horas, na companhia da mãe, Sabine, e dos três irmãos. Sobre o medo da morte, o diretor americano Woody Allen fez a seguinte piada: “Não que eu esteja com medo de morrer. Apenas não queria estar lá quando isso acontecesse”. Servan-Scheiber certamente não queria. Mas estava lá e agüentou firme, como seu pai ensinou.  

                                        Revista VEJA; edição 2237 – ano 44; nº 40; 05 de outubro de 2011  
                

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Hora de peitar os sindicatos

 

Gustavo Ioschpe, Veja.com, 09/04/11
 
Quando se fala sobre a política da saúde em relação ao tabagismo, os representantes dos fabricantes de cigarro raramente são trazidos para o debate. Essa exclusão não se dá pelo seu desconhecimento da questão, já que eles claramente conhecem o produto mais do que a maioria de seus interlocutores, nem porque haja algum preconceito contra essas pessoas — entendemos que elas estão fazendo esse trabalho para sustentar suas famílias, e não por um desejo de matar milhões de pessoas por ano. Desconsideramos suas opiniões porque sabemos que elas não terão em mente o bem público, mas única e exclusivamente o ganho de sua empresa. São parte interessada na questão e, portanto, sabemos que seu julgamento será influenciado por vieses potencialmente conflitantes com o interesse comum.
Na área da educação, que é tão importante quanto a da saúde, não é assim. Se você tem frequentado a imprensa brasileira nas últimas décadas, sua visão sobre educação será provavelmente idêntica à dos sindicatos de professores e trabalhadores em educação. Você deve achar que o país investe pouco em educação, que os professores são mal remunerados, que as salas de aula têm alunos demais, que os pais dos alunos pobres não cooperam, que deficiências nutritivas ou amorosas na tenra infância fazem com que grande parte do alunado seja “ineducável” e que parte do problema da nossa educação pode ser explicada pelo fato de que as elites não querem um povão instruído, pois aí começarão os questionamentos que destruirão as estruturas do poder exploratório dessas elites. Não importa que todas essas crenças, exceto a última, sejam demonstravelmente falsas quando se cotejam décadas de estudos empíricos sobre o assunto (a última não resiste à lógica). Todas elas vêm sendo defendidas, ad nauseam, pelas lideranças dos trabalhadores da educação. E, como são muito pouco contestadas, acabaram preenchendo o entendimento sobre o assunto no consciente coletivo, e já estão de tal maneira plasmadas na mente da maioria das pessoas que todas as evidências apresentadas em contrário são imediata e automaticamente rechaçadas. É como se ainda negássemos a ligação entre o cigarro e o câncer de pulmão.
A sociedade brasileira parece não reconhecer que os sindicatos de professores pensam no bem-estar de seus membros, e não no da sociedade em geral. Incorporamos a ideia de que o que é bom para o professor é, necessariamente, bom para o aluno. E isso não é verdade. Cada vez mais a pesquisa demonstra que aquilo que é bom para o aluno na verdade faz com que o professor tenha de trabalhar mais: passar mais dever de casa, mais testes, ocupar de forma mais criativa o tempo de sala de aula, aprofundar-se no assunto que leciona. E aquilo que é bom para o professor — aulas mais curtas, maior salário, mais férias, maior estabilidade no emprego, maior liberdade para montar seu plano de aulas e para faltar ao trabalho quando for necessário — é irrelevante ou até maléfico para o aprendizado dos alunos.
É justamente por haver esse potencial conflito de interesses entre a sociedade (representada por seus filhos/alunos) e os professores e funcionários da educação que o papel do sindicato vem ganhando importância e que os sindicatos são tão ativos politicamente, convocando greves, passeatas, manifestando-se publicamente com estridência etc., da mesma maneira que a indústria tabagista ou de bebidas faz mais lobby do que, digamos, os fabricantes de fralda.
Uma das razões que tornam os sindicatos tão poderosos é que eles funcionam. Estudo do fim da década de 90 mostrou que, entre os professores brasileiros, a sindicalização era o fator mais importante na determinação do seu salário: os filiados tinham salários 20% mais altos que os independentes.
Outras pesquisas sobre o papel do sindicato dos professores trazem resultados curiosos. Estudo de um economista de Harvard tentando entender o porquê da queda da qualidade das pessoas que optaram pela carreira de professor nos EUA entre 1961 e 1997 encontrou dois fatores: um deles, que explica três quartos do problema, era a crescente sindicalização dos professores, causando compressão salarial (o outro fator era a emancipação feminina, já discutida aqui em artigo anterior). Quando um sindicato se “adona” de uma categoria, a tendência é que os salários de seus membros deixem de ser um reflexo de seu mérito individual e passem a ser resultado de seu pertencimento a alguma categoria que possa ser facilmente agregável e discernível — como ter “x” anos de experiência ou ter feito uma pós-graduação, por exemplo —, pois só assim é possível estabelecer negociações salariais coletivas, para milhares de membros. E só com negociações coletivas é que se torna possível a um sindicato controlá-las. Talvez seja por isso que os aumentos salariais tenham se provado ferramenta tão ineficaz na melhoria da qualidade da educação: as pessoas mais competentes parecem não fugir do magistério pelo fato de o salário ser alto ou baixo, mas sim por seu salário não ter nenhuma relação com seu desempenho. Nenhum ás quer trabalhar em lugar em que recebe o mesmo que os vagabundos e incompetentes. Talvez seja por isso que outro estudo mostrou, paradoxalmente, que a filiação a um sindicato afeta de forma significativamente negativa a satisfação dos professores com a sua profissão. É o preço a pagar pelo aumento salarial.
O outro estudo que conheço sobre o tema é do alemão Ludger Wossmann, que comparou dados de 260 000 alunos em 39 países. Uma de suas conclusões é que naquelas escolas em que os sindicatos têm forte impacto na determinação do currículo os alunos têm desempenho significativamente pior (todos os estudos mencionados aqui estão na íntegra em twitter.com/gioschpe).
Quando ouvir um membro desses sindicatos se pronunciando, portanto, é mais seguro imaginar que suas reivindicações prejudicam o aprendizado do que o contrário. E, especialmente quando a questão for salarial, é preciso levar em conta que não apenas os professores são beneficiados por seu aumento, como os sindicatos também, já que são mantidos por cobranças determinadas através de um porcentual do salário.
Antes que a patrulha trate de pôr palavras na minha boca, eu me adianto: não sou contra a existência de sindicatos de professores, nem contra o lobby da indústria do cigarro, da bebida ou das armas. O direito de livre associação e expressão é um pilar inviolável de um estado democrático, e está acima até mesmo do aprendizado de nossos alunos. Só acho que os sindicatos e seus representantes devem ser vistos pelo que são: defensores de seus próprios interesses. Seu peso no discurso público deve ser temperado por essa realidade.
Esse insight causa dois impactos importantes. O primeiro é que nós, os defensores da melhoria educacional do país, estamos sós. O sindicato dos professores não é nosso parceiro e a união dos alunos deixou há muito de defender os interesses educacionais do alunado, trocando-o pela generosa teta do Erário e pelo triste mercantilismo da emissão de carteiras vale-desconto. Não podemos esperar por movimentos organizados para abraçar essa causa: precisamos criar nós mesmos essa união, que será inclusive boicotada pelo status quo.
O segundo é que, toda vez que uma organização com esses nobres fins se forma, o cacoete de buscar uma parceria com os representantes dos professores é o beijo da morte. Se quisermos defender exclusivamente o interesse do alunado, a relação com os sindicatos de trabalhadores da educação será provavelmente adversarial, talvez neutra, jamais colaborativa. Ou você já viu oncologista fazer parceria com a Souza Cruz ou o “Sou da Paz” de mãos dadas com a Taurus?

Gustavo Ioschpe é economista

Enem e a ditadura dos rankings

“Acredita-se em um poder mítico dos números e esquece-se que o ensino tem objetivos que não são passíveis de mensuração quantitativa”, afirma Cristiane Gottschalk, doutora em filosofia da educação e professora da Universidade de São Paulo. Além do alto número de rankings que procuram medir a qualidade de escolas e universidades, Gottschalk comenta a recente polêmica sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e a promoção de instituições de ensino com base no resultado da prova.
Existe na sociedade uma neurose em torno de rankings universitários e escolares?
Sem dúvida. Existe uma pressão crescente da economia mundial sobre os sistemas educacionais para que sejam determinados os níveis de eficiência das escolas e universidades. Um dos resultados são esses rankings que têm ocupado as manchetes, como se fossem descrições precisas do grau de eficiência das instituições. A avaliação de um aluno da escola básica não pode se reduzir a um número aferido por provas de disciplinas específicas, como matemática e português. Do mesmo modo, a pesquisa na universidade transcende a quantidade de artigos publicados em revistas especializadas.
Há fatores que não podem ser mensurados, mas são determinantes?
Além de serem determinantes, são condições de aprendizado, como a transmissão de princípios e procedimentos que são ensinados muitas vezes de modo tácito. Técnicas de memorização, modos de comparar e organizar fenômenos, diferentes formas de raciocínio (indutivo, analógico e dedutivo)… Há uma gama ilimitada de “fatores” não passíveis de serem mensurados em curto prazo.
O Enem é mais usado para a promoção dos colégios do que para a análise do ensino no país?
Sim. Mas, além desse uso perverso do Enem, que esconde interesses privados, gostaria de ressaltar outro equívoco. O exame está fundamentado em uma teoria pedagógica específica, denominada “pedagogia das competências”. Essa concepção tem como norte o desenvolvimento já na escola de competências exigidas pelo mercado de trabalho. Mais preocupante é que o governo tem anunciado o propósito de utilizar o Enem como modelo para o currículo do ensino médio, induzindo, assim, todas as escolas públicas a adotarem uma única metodologia de ensino. A escola perde sua autonomia e os professores passam a ser meros executores de orientações pedagógicas vindas de cima.

Incerto amanhã

As revoltas espalham-se pelo Oriente Médio, e os jovens que lançaram o movimento de protesto ganham a adesão de um número crescente de manifestantes. Isso nos leva a perguntar onde tudo isso vai terminar e quais serão as consequências geoestratégicas. Seria presunção afirmar que já temos respostas perfeitas neste momento, mas, mesmo assim, podemos começar a refletir sobre essas perguntas.
Se em alguns países a situação é de tudo ou nada (na Líbia, Muammar Gaddafi ou vai afogar a revolta em sangue ou vai desaparecer), em outros estamos assistindo a um exercício de contenção de danos, algo em que o regime atual cria a aparência de estar mudando e, ao mesmo tempo, se esforça para manter as mudanças no menor nível possível.
E, se as potências ocidentais estão aplaudindo o processo de democratização, por enquanto elas não deixam de estar obcecadas pela necessidade de conservar a estabilidade – ou seja, o status quo estratégico: uma paz fria entre Israel e o mundo árabe e a tentativa de montar uma frente unida para isolar o Irã.
Conservadores de várias linhas em diversas sociedades árabes também se preocupam com o rumo provável do movimento democrático e buscam algum tipo de solução de meio-termo.
Um conflito de gerações percorre a oposição às diversas autocracias. Isso se evidencia especialmente no caso daIrmandade Muçulmana, no Egito. A geração mais velha que controla o aparatopartidário ainda está seduzida pelo culto ao líder carismático. Ela é socialmente conservadora e teme que a revolta se espalhe. Embora aceite o pluralismo político, sua cultura não é democrática, e ela desconfia da liberdade de expressão e do debate.
Poderia uma Irmandade Muçulmana tradicionalista tornar-se parceira de um Exército que procura
interlocutores que compartilhem seu desejo de ordem e sua rejeição aos novos movimentos sociais?
Em toda a região, na ausência de elementos do próprio movimento, as figuras que estão administrando a transição vêm do velho regime. Elas não aderiram à cultura política dos manifestantes. Continuam trancadas em uma mentalidade autoritária, pedindo o retorno à normalidade. Não compreendem que anunciar eleições e um punhado de reformas já não é o bastante para tirar as pessoas das ruas.
Cada vez mais é o desemprego ou subemprego entre os jovens que move protestos que reivindicam o fim da monopolização de grandes setores da economia por uma elite. Em todos os países afetados, com exceção da Tunísia, o Exército faz parte dessa elite.
Está claro que, na maioria dos casos, a oposição à moda antiga vai sentir-se tentada a buscar um entendimento com as elites entrincheiradas. Estas, por enquanto, estão prometendo restabelecer um governo que certamente se mostrará mais aberto, mas que nem por isso deixará de ser autoritário.
A divisão crítica aqui é de ordem geracional, mais que ideológica. Uma nova geração de Irmãos Muçulmanos, que já era visível na esfera pública e na internet, está sujeitando os princípios da Irmandade à prova da democracia e da liberdade de expressão.Essa nova geração uniu-se às manifestações na Praça Tahrir, no Cairo, contrariando os conselhos da liderança da organização.
O mesmo se aplica à geração mais jovem de cristãos coptas, que não quer mais ser representada pelo patriarca, o papa Shenouda 3º.
O problema é que as elites no poder, assim como uma parte da oposição convencional, ainda não
compreenderam quão inovador é o movimento de protesto. Não compreenderam que ele é não violento, que fala em nome da democracia e do pluralismo e que não usa a ideologia para disfarçar divisões sociais.
Em lugar disso, abraça todos os setores da sociedade exceto a família governante e inutiliza todos os velhos instrumentos da repressão, que empregava um misto de violência e suborno.
O que está sendo rejeitado é uma cultura política que sobrevive há 60 anos no Oriente Médio: a aparência de unidade em torno de uma causa (o povo árabe, o islã ou a Palestina) e um líder (o zaim), um Estado erguido sobre os serviços secretos (os mukhabarat) e a vilipendiação de todos os adversários, tachados de traidores a serviço de potências estrangeiras (geralmente os Estados Unidos ou Israel).
O movimento de protesto é democrático e nacionalista, e é provável que fortaleça a posição regional e internacional dos países em que tiver êxito, porque vai instalar governos com legitimidade maior e, consequentemente, dotados de maior liberdade de manobra.
A difusão rápida do movimento por todo o Oriente Médio suscita outra pergunta: até que ponto a democratização (quer ela acabe por ser bem-sucedida, quer não) mudará o equilíbrio estratégico de poder?
O que está acontecendo no Bahrein é um bom indicativo do impacto geoestratégico possível. A divisão religiosa nesse país, onde uma minoria sunita governa a maioria xiita, sugere que uma vitória da democracia empurrará o Bahrein para a órbita do Irã, modificando consideravelmente o equilíbrio de poder no Golfo Pérsico.
Isso porque, entre outras razões, o Bahrein passará a ser visto como exemplo pelos xiitas da Arábia Saudita. É essa, pelo menos, a análise preferencial feita em Riad, e é ela que justifica o apoio saudita, contínuo e inequívoco, à família governante do Bahrein.
Contudo, a oposição barenita (que, por uma vez pelo menos, está associada a um partido político)
apresenta-se não como grupo sectário, mas como movimento que atrai cidadãos de todas as denominações religiosas.
Seus partidários agitam a bandeira nacional – a bandeira da família Khalifa –, e não o estandarte xiita nem as cores do Irã. Ela tem poucos vínculos com a teocracia iraniana, que colocou sob prisão domiciliar um de seus líderes espirituais, o aiatolá Shirazi. E a escola dominante de pensamento religioso no Bahrein, o “akhbarismo”, não é a escola predominante no Irã.
Em suma, a oposição barenita assumiu uma compleição nacional, como fizeram as oposições na Tunísia e no Egito.
Logo, a monarquia barenita encontra-se em um momento de virada. Ou ela continua a identificar-se com a minoria tribal Bani Utbah, que tomou o poder no século 18, ou aceita um conceito mais amplo de cidadania que abarque os dois lados da divisão religiosa – isso, aliás, é justamente o que os manifestantes vêm pedindo.
Nacionalizar-se dessa maneira é o que a monarquia marroquina vem conseguindo fazer no decorrer de sua longa história. No Marrocos, a maior parte da nação identificou-se com a monarquia, de tal modo que esse foi o único Estado árabe verdadeiramente independente durante a era otomana e que conservou sua identidade nacional sob o protetorado francês.
Hoje o movimento de protesto no Marrocos, em contraste com os de outros países da região, não procura solapar o sistema como tal. O que deseja é uma reforma, mais que uma revolução, e uma transição gradual para uma monarquia constitucional. Apesar disso, o círculo extenso que cerca o rei Mohammed 6º teme mudanças que tornem o poder mais transparente e o forcem a abandonar os privilégios de que desfruta.
No Iêmen, o governo está jogando com as velhas divisões entre os povos tribais e os moradores das cidades, além das divisões que separam as tribos do norte do país, historicamente hostis à elite urbana, dos democratas.
No pano de fundo há o movimento secessionista do sul, que se vê como o principal prejudicado pela
reunificação. O presidente Ali Abdullah Saleh terá pouca dificuldade em mobilizar as tribos, cuja intervenção, se acontecer, será sangrenta. Também na Líbia a oposição precisa enfrentar lealdades tribais, embora pareça ter dinamismo suficiente para superá-las.
Na Síria, onde as memórias do massacre de membros da Irmandade Muçulmana em Hama, em 1982, ainda são recentes, a minoria alauita, que detém o poder, sem dúvida sente-se ameaçada e, como Gaddafi, se disporia a resistir.
Na Argélia, enquanto isso, a sombra de dez anos de guerra civil está impedindo os protestos de se espalhar. O regime argelino implantou uma forma inovadora de autorrepressão entre a população, em que ninguém nunca sabe quem está massacrando quem. Isso permite que os militares exerçam o poder de modo mais ou menos sereno e discreto.
Em suma, ao jogarem com divisões culturais, os regimes autoritários no Oriente Médio enfraquecem seus próprios Estados, enquanto forças democráticas estão empurrando esses Estados na direção da homogeneização nacional maior.
Um dos resultados dessa onda de democratização pode ser o fortalecimento do nacionalismo, mas de um nacionalismo regido pela realpolitik, mais que por ideologias supranacionais de qualquer espécie.
Seja qual for o alcance de seu sucesso, é pouco provável que o movimento democrático crie novas formações geoestratégicas (como um choque entre xiitas e sunitas, por exemplo). Pelo contrário,é mais provável que leve ao fortalecimento dos nacionalismos sobre a base de uma administração mais satisfatória das divisões sociais e religiosas.
Contudo, se o nacionalismo sair triunfante, será um nacionalismo muito menos ideológico.
Uma consequência provável de tudo isso, embora inesperada, é a diminuição do papel exercido pelo conflito israelo-palestino na política regional. Ao mesmo tempo, isso terá o efeito de isolar Israel, que perderá seu status muito alardeado de única democracia do Oriente Médio.
É interessante observar quão pouco os integrantes dos novos movimentos vêm aludindo a Israel ou à Palestina, especialmente quando se considera que, até agora, essa situação (Israel-Palestina) vem servindo para frustrar a evolução política em outros países. Isso se deve a como essa situação vem sendo manipulada pelos regimes no poder, mas também por certa esquerda terceiro-mundista ocidental para a qual nada poderia mudar no Oriente Médio enquanto a questão da Palestina não for resolvida.
A cegueira em relação às sociedades árabes não vem sendo exclusiva dos governos ocidentais.
Se a relativa indiferença dos manifestantes em relação a Israel-Palestina tiver o efeito de relegar o governo de Tel Aviv ao segundo plano, ela também tem implicações para o Hezbollah, no Líbano.
Para o Hezbollah, o movimento em busca da democracia encerra dois problemas. Primeiro, ele ameaça
amesquinhar o papel regional do Hezbollah, reforçando a posição dos Estados-nação à custa das ideologias panárabes e pan-islâmicas.
O segundo problema é que ele substitui o pertencimento religioso pela noção da cidadania como fundamento desses Estados. Desse modo, o Hezbollah, que é ao mesmo tempo partido religioso e movimento ideológico vanguardista, vai perder parte da liderança moral que acumulou por opor-se aos regimes forçados e às negociações debaixo dos panos com Israel.
Resta ver como os novos regimes que vão emergir vão se comportar em relação a Israel. É provável que eles mantenham a paz fria, mas uma paz fria que force Israel a confrontar suas próprias contradições e obrigue as potências ocidentais a assumir suas responsabilidades.
Outra vítima colateral da democratização será a frente contra o Irã. Não porque o Irã vá ganhar popularidade, mas porque os novos governantes terão pouca disposição de empreender cruzadas no exterior e não vão mais precisar provar suas boas intenções para um Ocidente que, em lugar disso, terá de reconhecer a vontade do povo.

Olivier Roy foi consultor da ONU
Oliver Roy, 62 anos, é professor de teoria social e política no Instituto Universidade Europeia, em Florença, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e no Instituto de Estudos Políticos, em Paris.
Um dos principais estudiosos europeus de religiões comparadas e das sociedades islâmicas, foi consultor das Nações Unidas para o Afeganistão. É também diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, além de ter sido professor visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Publicou, entre outros livros, La Sainte Ignorance (A Santa Ignorância) e L´Échec de l´Islam Politique (O Fracasso do Islã Político), ambos pela editora francesa Seuil.

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    Publicada há 50 anos, obra de Michel Foucault defende 
que a loucura é uma construção histórica e cultural

    Defendida como tese de doutorado em 1961 e publicada como livro no mesmo ano pela editora francesa Plon, a obra de Foucault já tem a duração de 50 anos. Se foi intitulada inicialmente como Loucura e Desrazão – História da Loucura na Idade Clássica, em contrapartida, na edição de 1972, pela Gallimard, o livro foi publicado com o título História da Loucura na Idade Clássica, que permanece até hoje.
    A formulação desse livro foi a contrapartida do impasse em que se encontrava a psiquiatria nos anos 1950, na medida em que o estatuto de destruição dos enfermos mentais pela longa internação asilar estava em pauta.
    Com efeito, a condição asilar dos internados evocava a recente experiência dos campos de concentração nazistas, tanto na tradição europeia quanto na norte-americana. Daí porque foi no mesmo contexto histórico em que Foucault publicou sua obra inaugural que o psiquiatra Szasz publicou O Mito da Doença Mental (1961) e o antropólogo Goffman publicou Asilos (1959), ambos nos Estados Unidos.
    Logo em seguida iniciou-se o movimento antipsiquiátrico, nas suas diferentes modalidades discursivas e políticas, que colocou em questão o estatuto do internamento dos loucos e a concepção da loucura como enfermidade mental.
    Não obstante esse a priori histórico e social, o livro de Foucault tem uma especificidade teórica que o distingue dos demais, pois inaugurou um novo estilo de pensar no campo da filosofia, no qual criticava a tradição universitária instituída pela conjugação da filosofia de Nietzsche com o discurso teórico da história, situada esta na escala da longa duração.
    Foi por esse viés que Foucault construiu inicialmente a arqueologia do saber e posteriormente a genealogia do poder, para concluir seu percurso teórico pela realização de uma estilística da existência.
    Nesse contexto, passou a formular que o que fizera desde o início de seu percurso teórico foram problematizações nas quais as diferentes problemáticas que escolheu como objeto de pesquisa – a razão, a vida e a morte, o discurso, a punição, a sexualidade e o sujeito – tinham um alcance estratégico para a leitura dos pontos cruciais que constituíram a tradição ocidental, iniciada no Renascimento e desdobrando-se na modernidade.
    Portanto, a História da Loucura na Idade Clássica foi o pontapé inicial conduzido por Foucault na longa epopeia filosófica de suas problematizações, centrando-se na oposição razão e desrazão.
    O livro transformou-se num clássico, não necessariamente para a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, cuja recepção foi marcada pela ambiguidade e pela crítica, mas pelas ciências humanas, as ciências sociais e a filosofia – que reconheceram positivamente seu potencial crítico, de maneira que pôde contribuir para a renovação desses discursos teóricos.
    Pressupostos filosóficos
    Por que houve resistência dos saberes do campo psi a essa obra?
    Antes de mais nada, porque ela rompeu com suas certezas, na medida em que Foucault sustentava que a loucura era uma construção eminentemente histórica e cultural, rompendo assim com uma leitura naturalista dela.
    Além disso, indicava como as diferentes leituras sobre a loucura se inscreviam em pressupostos filosófico, moral, religioso e científico que regulariam as práticas sociais sobre ela, e que era isso que deveria ser colocado em evidência numa arqueologia da loucura.
    Dito de outra maneira, o que Foucault ressaltou foi como a 
experiência da loucura foi objeto de silêncio e de exclusão social como seu correlato; necessário seria realizar a arqueologia desse silêncio. Para isso, portanto, seria preciso percorrer os diferentes momentos constitutivos desse silenciamento para indicar como a loucura foi transformada numa experiência sem sujeito, sem verdade e marcada pela ausência da obra.
    Assim, o que estaria em pauta nesse projeto seria assinalar que a loucura foi transformada pela psiquiatria em doença mental somente no século 19, como também criticar o gesto libertário dos loucos por Pinel. Este e aquele supunham efetivamente uma transformação social e política fundamental, mas que não foram necessariamente na direção de constituir uma sociedade democrática, como suporiam posteriormente Gauchet e Swain em A Prática do Espírito Humano – A Instituição Asilar e a Revolução Democrática (1980).
    Foi por causa disso que Henri Ey, referência maior da psiquiatria francesa de então, denominou de psiquiatricida a intenção teórica de Foucault, num colóquio de 1969 intitulado “Concepção Ideológica da História da Loucura” (Évolution Psychiatrique, tomo 36, fascículo 2, 1971).
    Da mesma forma, Ellenberger, em A Descoberta do Inconsciente (1972), não podia aceitar que a loucura não se inscrevesse no registro da natureza, não obstante suas diferentes leituras sociais e culturais.
    Entre Bosch e Erasmo
    No entanto, para Foucault algo se transformou na recepção social da experiência da loucura de maneira fundamental, entre as telas inquietantes de Bosch e o discurso teórico de Erasmo em Elogio à Loucura.
    Se no primeiro registro a loucura era figurada de maneira ameaçadora, no segundo ela já estaria domesticada. O que estaria em pauta, portanto, seria a descontinuidade entre o tempo da livre circulação da loucura no espaço social – e onde esta era enunciada como fonte de verdade – e o tempo posterior no qual a loucura não teria mais qualquer referência ao sujeito e à verdade, caracterizando-se como ausência de obra.
    Foi no intervalo entre esses dois marcos que a razão teria sido constituída. Enunciou-se assim a grande ousadia teórica de Foucault, que articulou intimamente a constituição da filosofia moderna e a configuração do registro da desrazão, na medida em que aquela, com o cogito de Descartes, forjou a razão e seu correlato, qual seja, o discurso da ciência.
    Assim, o que Foucault procurou demonstrar, em sua arqueologia do silêncio da loucura, foi que existia uma relação estrutural entre a emergência histérica do cogito cartesiano nas Meditações (1641) e a construção dos hospitais gerais, para onde o soberano enviava todos aqueles inscritos no registro da desrazão: loucos, vagabundos, blasfemadores, heréticos, traidores etc.
    Com efeito, foi com o estabelecimento do campo da razão que o da desrazão foi instituído, já que Descartes, nas Meditações, excluía a loucura do registro do pensamento. Portanto, para a loucura não seria possível enunciar o “penso, logo existo”, pois não existiria naquela nem sujeito nem tampouco verdade.
    O desdobramento disso foi a exclusão da loucura do espaço social que perdurou durante séculos em nossa tradição, até bem recentemente.
    Nessa perspectiva, Foucault formulou a existência de duas tradições face à loucura, quais sejam: a crítica e a trágica. Se pela primeira aquela seria objeto de desconfiança, pois não existiria nela nem sujeito, nem verdade, na segunda a loucura seria marcada pela criatividade e pela possibilidade de produção de obra.
    Foi então a tradição crítica que se instituiu no século 17 e que se desdobrou na constituição da psiquiatria no final do século 18. Em contrapartida, a tradição trágica manteve-se sempre marginal nos registros da literatura (Holderlin e Nerval), da dramaturgia (Strindberg e Artaud), da pintura (Van Gogh e Goya) e da filosofia (Nietzsche), em que sujeito e verdade puderam efetivamente se conjugar.
    Terceira margem da loucura
    É claro que Foucault pretendeu enunciar a tradição trágica numa terceira margem, para parafrasear Guimarães Rosa, fazendo então a elegia dos marginalizados pela história do Ocidente. Por isso mesmo, a literatura e a tradição artística foram os verdadeiros herdeiros da tradição trágica na modernidade.
    Da mesma forma, foi por causa disso que Foucault empreendeu posteriormente uma genealogia da punição, em Vigiar e Punir (1974), 
e uma genealogia da sexualidade 
baseada no dispositivo da confissão, em A Vontade do Saber (1976).
    Além disso, Foucault inscreveu a constituição da psicanálise no registro da tradição crítica, na medida em que Freud teria tido a genialidade de perceber que o dispositivo asilar estaria centrado na figura do alienista.
    Assim, descartando-se das figuras do enfermeiro e do guarda, Freud inventou o espaço psicanalítico centrado na transferência, de forma que as alienações e as desalienações do sujeito se realizariam desde então em referência ao personagem taumatúrgico do analista, em continuidade com o dispositivo psiquiátrico do tratamento moral.
    Como indicou devidamente Elisabeth Roudinesco, em “Leituras da História da Loucura (1961-1986)”, no colóquio comemorativo dos 30 anos da publicação do livro (Penser la Folie, Galilée, 1991), a obra de Foucault pegou a psiquiatria de calças curtas, pois não realizava até então obras de história da psiquiatria, e sim apenas hagiografias dos psiquiatras libertadores da loucura.
    A obra magistral de Foucault teve assim o efeito de constituir uma historiografia psiquiátrica baseada em arquivos consistentes. A mesma formulação seria válida para a história da psicanálise, que teve na obra de Roudinesco sua grande realização.
    Debate com Derrida
    Contudo, o grande debate sobre a obra de Foucault realizou-se no campo da filosofia, tendo em Derrida o maior crítico. Assim, numa conferência realizada em 1963, no Collège de Philosophie, intitulada “Cogito e História da Loucura”, Derrida não aceitou o pecado metafísico de Foucault de inscrever a filosofia de Descartes em sua arqueologia da desrazão.
    Ele sustentou assim que, com a figura do gênio maligno, o cogito cartesiano estaria presente na experiência da loucura, de forma que o “penso, logo existo” poderia ser dito em qualquer circunstância. Além disso, formulou que a dita obra de Foucault apenas pôde ser escrita com a invenção da psicanálise, na medida em que essa deslocou a figura da loucura em nossa tradição, com a formulação do conceito do inconsciente.
    Foucault interpelou Derrida em 1972, em “Resposta a Derrida”, afirmando entre outras coisas que, quando formulou a História da Loucura na Idade Clássica, estava rompendo com a tradição filosófica de que Derrida era o porta-voz em sua crítica, na medida em que retirara do discurso filosófico qualquer superioridade 
teórica sobre os demais discursos e que procurara colocar em evidência, com o conceito de “episteme”, a existência de um inconsciente do saber.
    Derrida retomou a crítica a Foucault, em 1991, em “Fazer Justiça a Freud”, indicando as múltiplas ambiguidades de Foucault face à psicanálise.
    Pode-se afirmar então que a obra de Foucault sobre a loucura foi não apenas um livro-acontecimento, mas continua viva, pelas inúmeras polêmicas que provocou e ainda provoca.
    Além disso, mesmo que o estatuto da internação da doença mental tenha sido colocado em questão com as curtas internações, a minoridade do louco e sua relação com a verdade estão ainda em pauta, quando as camisas de força bioquímicas passaram a regular a experiência da loucura na atualidade e onde o discurso da loucura é francamente interditado.
    Sob essa perspectiva, Foucault, numa passagem célebre de seu livro, sublinha que seria preciso fazer justiça a Freud, pois na narrativa de suas histórias clínicas e em particular no caso Schreber inscreveu a loucura no campo do discurso.
    Assim, apesar de suas críticas, Foucault também escutou a formulação de Freud de que o delírio, como discurso, seria uma “tentativa de cura” e que, nessa medida, a psicanálise se inscreveria na tradição trágica sobre a loucura.
    Não seria essa “tentativa de cura” que estaria hoje interditada com as camisas de força bioquímicas?
    Joel Birman é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e professor-adjunto do Instituto de Medicina Social da Uerj

    "Cultura cristã é superior à cultura islâmica"

    Gabriel Bonis

    18 de outubro de 2011 às 13:48h

    Em entrevista a CartaCapital, escritora Ayaan Hirsi Ali, ex-muçulmana, defende a conversão de islâmicos ao cristianismo para conter extremistas religiosos. Foto: Divulgação
    Em 1992, Ayaan Hirsi Ali foi para a Holanda fugindo de um casamento arranjado pelo pai. No pequeno país europeu, onde viveu como refugiada e depois cidadã, a somali viu seus valores islâmicos entrarem em colapso. Passou de militante da Irmandade Muçulmana à agnóstica, parlamentar e crítica ao Islã.
    Na Holanda, despertou a ira dos muçulmanos ao produzir o curta Submissão (2004), no qual uma muçulmana aparece vestida com uma burca parcialmente transparente, enquanto reza e critica o Islã. O vídeo resultou no assassinato de Theo van Gogh, diretor holandês do filme, por um extremista religioso.
    Mutilada genitalmente na infância, a autora do best seller de memórias Infiel virou alvo de extremistas religiosos. Atualmente vive sob escolta nos EUA, de onde conversou com o site de CartaCapital, por telefone, sobre seu novo livro, Nômade (Companhia das Letras, 392 págs., R$ 46,00).
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    O trabalho traz uma postura polêmica da autora: o Ocidente precisa enxergar o perigo do Islã. Ali sugere também que o cristianismo conquiste os muçulmanos para conter os extremistas.
    Na íntegra da entrevista abaixo, a somali fala, entre outros tópicos, sobre os valores que enxerga no cristianismo, a proibição do uso de trajes cobrindo o rosto em diversos países europeus e do sexo para as muçulmanas no Ocidente.
    CartaCapital – No livro Nômade, a sra. afirma que o Ocidente precisa reconhecer a ameaça do Islã e sugere uma aproximação da Igreja Católica para converter imigrantes muçulmanos. Sua justifica é de que o cristianismo tem melhores valores que o Islã. Quais seriam esses valores?
    Ayaan Hirsi Ali – Como analistas, podemos olhar para diversas religiões e culturas e dizer qual é melhor. Para os politicamente corretos, analisando a perspectiva do multiculturalismo, não há como compará-las, não se deve fazer isso. Contudo, creio que é um desperdício de oportunidade não fazê-lo devido aos desafios do Islã. Olho a cultura islâmica e a cristã e vejo que a cristã passou por um longo período de esclarecimento. As pessoas aceitaram a separação entre a religião, Estado e assuntos de sexualidade, embora isso não se aplique a todos os cristãos. Muitos deles são incapazes de fazer essa separação, mas em geral na cultura cristã ocidental essa separação foi reconhecida e aplicada. Neste sentido, creio que essa nova cultura cristã, que passou por uma reforma e esclarecimento, é superior à cultura islâmica, isenta desse processo. No Ocidente, a Igreja não é a legisladora, a lei é feita de forma independente no Parlamento e no Congresso. As pessoas que as produzem são eleitas por outras pessoas, o presidente dos EUA não é eleito por Deus. Isso é um grande progresso em termos de humanidade se compararmos o cristianismo ao islamismo, um progresso que os muçulmanos ainda não enfrentaram por completo.
    CartaCapital – Mas esses itens apontados não estão relacionados apenas com o cristianismo, há aí valores da Revolução Francesa, por exemplo…
    AHA – Na história do cristianismo quando a Igreja legislava, as pessoas se revoltaram e quiseram melhorar esse aspecto. Disseram que Deus não poderia legislar, porque quem fala por Deus? Se olharmos a propaganda islâmica e sua agenda, o que estão dizendo é que as pessoas têm que viver pela lei da Sharia, a lei divina. É claro que há lei secular e questões de liberdade e governos que não têm nada a ver com religião. Porém, é possível ter uma discussão e uma opinião diferente sobre os seculistas e problemas como governo e sexualidade, mas tradicionalmente o principal problema tem sido entre pessoas que querem a religião no centro da moralidade e do governo e as outras que dizem ‘não, a religião deveria ser pessoal’.
    CartaCapital – A sra. sugere no livro uma forma mais “ocidentalizada” de Islã. O que seria e como criá-la?
    AHA – Sugiro que o Islã se reconcilie com a modernidade. Os líderes islâmicos têm que reconhecer a liberdade dos membros das comunidades. Se eles quiserem podem aprender com a história do cristianismo, porque as pessoas foram reconhecidas não como inferiores à comunidade, mas o indivíduo é superior à comunidade. O indivíduo possui direitos e a liberdade para formar sua livre associação, sua própria comunidade. Nasci muçulmana e decidi não ser muçulmana, deveria ser decaptada por isso? É o que pensam os radicais muçulmanos. Você não pode deixar a fé? Isso é errado.
    CartaCapital – Você vive agora nos EUA, como a sociedade americana enxerga os muçulmanos, especialmente após os dez anos dos atentados de 11 de setembro?
    AHA – Creio que nos últimos dez anos, o 11 de Setembro mudou mais o Islã e os imigrantes muçulmanos neste país do que os EUA. Porque agora, pela primeira vez, os muçulmanos estão vivendo em um ambiente onde as pessoas perguntam sobre a fé, livros sobre o Islã são publicados e debates livres e discussões sobre o assunto são possíveis. Um fato profundo e extremamente raro na história do Islã.
    CartaCapital – Há mais preconceito contra os muçulmanos nos EUA?
    AHA – Não há mais preconceito e sim atenção. Antes de 11 de Setembro de 2001, havia pouca ou nenhuma atenção aos muçulmanos. Após os atentados, isso mudou e essa atenção é em parte positiva e negativa.
    Para Ali, a proibição de cobrir o rosto com tecidos em alguns países europeus não é uma questão de Direitos Humanos. Foto: Rineke Dijkstra
    CartaCapital – Em julho, Anders Behring Breivik realizou dois atentados na Noruega, matando centenas de pessoas. Ele escreveu um manifesto justificando o seu ato como uma forma de combater a invasão do Islã na Europa. Não era cristão, mas dizia ser defensor de um cristianismo capaz de converter muçulmanos. Como você analisa as ideias dele?
    AHA – Há muitos críticos do Islã e muitas pessoas que reconhecem o problema na Europa e culpam os muçulmanos por um lado e os não muçulmanos por outro. A grande diferença é que ele vê a violência como solução para o problema. Isso é algo que não proponho, assim como outros críticos do Islã. A resposta não é atirar em pessoas ou deportá-las, mas sim esclarecê-las e isso é um exercício de envolvimento na troca de ideias em uma sociedade livre. No livro, proponho que o cristianismo talvez seja mais atraente para os muçulmanos vivendo na Europa. Qualquer muçulmano pode concordar ou não, mas não proponho o uso da força. O uso da força da forma como ele propôs seria o fim da sociedade.
    CartaCapital – Você acredita que as suas sugestões, caso colocadas em prática, poderiam aumentar a tensão entre muçulmanos e o Ocidente?
    AHA – Em Nômade reconheço o que todos já haviam feito desde 11 de Setembro de 2001: há uma corrente muito radical no Islã, violenta e querendo uma guerra com o Ocidente. Isso não se aplica a todos os muçulmanos, ou a maioria deles. É uma minoria. Proponho que, para derrotar essa minoria, a maioria examine as idéias dos radicais e se essa sugestão significa adotar valores ocidentais, então seria ainda melhor. A maioria dos muçulmanos diz não gostar do pensamento radical, mas também não quer ser vista como ocidentalizada, uma traição aos valores islâmicos. Tento dizer que há outras opções disponíveis sem rótulos ocidentais. Muitos muçulmanos com quem encontro e converso, por exemplo, são atraídos pela ideia de libertar mulheres, mas crêem que isso seria trair o Alcorão e o profeta Maomé. Digo que é correto trair os seus ensinamentos por um bem maior: a liberdade das mulheres e sua igualdade perante a lei.
    CartaCapital – Quando você diz libertar as mulheres, como explica aquelas que defendem o uso de trajes cobrindo os rostos em países como Bélgica, Itália e França, que já adotaram medidas para proibir o seu uso?
    AHA – Quero destacar que na França, Suécia e Suíça elas vivem em uma cultura na qual podem identificar quais são os seus direitos e lutar por eles de acordo com a lei. Para a pessoa que é religiosa, tem que fazer um balanço. Tomar uma decisão, porque cobrir o rosto nesses países é contra a lei.
    CartaCapital – Na sua opinião, uma lei que força pessoas de outras culturas a abandonarem seus valores é correta?
    AHA – Os legisladores da França apresentaram diversas razões sérias para essa lei, que vem de um processo democrático pelo qual foi possível convencer a maioria dos franceses. Não sou uma legisladora francesa e quando estava na Holanda não votei pelo banimento do véu, mas nesse contexto é o que a maioria deseja. As mulheres muçulmanas têm que viver de acordo com essa lei. Além disso, a legislação vale para todas as demais pessoas religiosas. Houve um processo democrático e, neste caso, os valores religiosos pessoais devem passar para o segundo lugar.
    CartaCapital – A sra. considera isso uma violação dos Direitos Humanos?
    AHA – Não é uma questão de Direitos Humanos querer cobrir o seu rosto. Creio que os Direitos Humanos têm sido banalizados de tal forma que agora discutimos sobre assuntos como esse. Não há nenhum dano corporal ao se dizer a uma mulher que ela não pode usar o véu.
    CartaCapital – Em Nômade, a sra. afirma que o multiculturalismo não funcionou e criou guetos. Porém, não seria possível a coexistência de culturas diferentes?
    AHA – Quando pessoas de diferentes culturas se reúnem há sempre uma oportunidade de viver em harmonia, mas culturas também colidem. Não é especialmente a islâmica ou a ocidental. Valores diferentes colidem e isso cria uma cultura dominante, que neste momento é a ocidental. Há conflitos desses valores diariamente, com vitórias para os dois lados. É assim que devemos vê-los e não exagerar as diferenças culturais. Surge um problema quando determinado grupo diz que a única forma de acabar com essa situação é pela violência. É o que os radicais islâmicos estão propondo e a sociedade precisa ser cuidadosa para não ser pega entre esses extremistas.
    CartaCapital – No Ocidente, as mulheres realizaram vários movimentos para conquistar mais direitos. A sra. vê isso acontecendo em países islâmicos?
    AHA – Todos os dias vejo pequenas boas notícias. A última é que o rei da Arábia Saudita permitiu o voto às mulheres no nível municipal. No Ocidente isso é uma piada, porque as mulheres podem votar há décadas. Na Arábia Saudita, é outra piada porque ninguém pode votar, é uma monarquia. Mas o fato de reconhecer as mulheres, mesmo que simbolicamente, é importante.
    CartaCapital – Como as muçulmanas no Ocidente lidam com o sexo?
    AHA – Há três categorias de mulheres: aquelas nascidas em famílias muçulmanas nas quais os pais e irmãos as dão liberdade. Elas podem escolher quem amar ou casar, têm o direito de ir e vir, trabalhar ou não. Essa é uma porcentagem muito pequena, mas existe. Há uma segunda categoria de mulheres que vivem uma vida hipócrita. Desfrutam a liberdade ocidental quando saem de casa e ao retornar comportam-se conforme o Islã. Um exemplo é uma mulher que sai de casa com o hijab e quando chega à esquina, o tira. Isso é interessante, pois algumas famílias sabem e outras não, sendo impossível manter essa farsa por muito tempo. A terceira categoria, que acredito ser a maioria, inclui as mulheres obrigadas a obedecer aos desejos de suas famílias. Possuem irmãos como guardiões masculinos e essas famílias, mesmo sabendo que vivem no Ocidente livre, são excluídos da liberdade.
    CartaCapital – A sra. se considera uma exceção?
    AHA – Sou uma exceção no sentido de que fui até o final. Não pertenço à primeira categoria, porque meus pais não concordam com o meu estilo de vida. No momento não estou na segunda, pois me recuso a viver na hipocrisia, mas já o fiz no passado. Também não me enquadro na terceira, uma vez que obviamente me revoltei contra isso. Há ainda uma categoria de mulheres muito pequena, as que decidiram enfrentar os problemas. Precisamos garantir que elas tenham ajuda.

    Gabriel Bonis